Sob o olhar atento de uma sociedade que luta, incessantemente, pela humanização das relações jurídicas, falar-se em regulamentação da terceirização nos moldes propostos pelo Projeto de Lei nº 4.430/04 tem trazido à baila acaloradas discussões. E não é para menos.

Para o Direito do Trabalho, que tem em seus poros um plano de consolidação de espaços de luta pela dignidade humana, a terceirização está intimamente ligada ao aviltamento do trabalhador. Como realça Hannah Arendt, em “As Origens do Totalitarismo”, os direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução. Na linha do polêmico projeto, desconstrução seria o vocábulo mais apropriado.

Hoje o Congresso Nacional vive o dilema de fazer com que a ordem justrabalhista e a econômica se encontrem em um cenário que aponta para um forte desequilíbrio entre os “valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”, um dos fundamentos da República Federativa do Brasil (artigo 1º da Constituição Federal).

E não se trata de exagero retórico. O estudo e a prática desenvolvidos por profissionais que militam na área, como auditores, procuradores e juízes do Trabalho, conduzem para a lamentável constatação de que a terceirização está relacionada às mais graves formas de precarização do trabalho: discriminação, rotatividade, inidoneidade financeira, acidentes laborais, exposição a condições análogas à escravidão, mortes.

Atualmente, é a Súmula nº 331 do Tribunal Superior do Trabalho a balizadora das decisões judiciais que envolvem o assunto. Ela estabelece que não forma vínculo de emprego com o tomador a contratação de serviços de vigilância e de conservação e limpeza, bem como a de serviços especializados ligados à atividade-meio do tomador, desde que inexistente a pessoalidade e a subordinação direta. Enquanto o Projeto de Lei nº 4.430/04 não for sancionado, a Suprema Corte Trabalhista continuará aplicando o referido verbete sumular, que veda a terceirização para as atividades-fim das empresas.

Cabe considerar que a precarização das relações trabalhistas em ambiente terceirizado já é preocupante nas atividades-meio, que contam com aproximadamente 12 milhões de trabalhadores. Uma vez liberada indiscriminadamente também para as atividades-fim (verdadeira inconstitucionalidade, diga-se de passagem), portas serão abertas para que mais 36 milhões de pessoas sejam subcontratadas.

A ilustrar o quadro da situação de labor dos terceirizados, dados de 2013 do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese) indicam que eles têm salário 24% menores do que os contratados diretamente; trabalham, em média, 3 horas a mais por semana do que os demais; sofrem um maior número de acidentes de trabalho (em 2013, no setor elétrico, 61 dos 79 mortos eram terceirizados; nas obras de acabamento, dos 20 mortos, 18 eram terceirizados; nas obras de terraplanagem, foram 18 de 19) e são maioria entre as vítimas do trabalho escravo no Brasil (entre 2010 e 2013, dos 3,5 mil trabalhadores resgatados nas 10 maiores operações realizadas, quase 3 mil eram terceirizados).

Não é difícil concluir que a tese do patronato de redução de custos e aumento do dinamismo das empresas e dos negócios sem supressão dos direitos dos empregados não guarda a mínima correspondência com a realidade. Ora, de que maneira pode uma contratação ser mais barata quando se passa a incluir uma empresa intermediária que, por óbvio, também visa ao lucro? A matemática é simples: o custo só será menor à medida que houver arrocho salarial, aumento de jornadas e ausência de fiscalização das normas regulamentadoras de segurança e saúde no trabalho. Consequentemente, menos funcionários são necessários, devendo haver redução nas contratações e prováveis demissões – além de, é claro, um maior número de acidentes e mortes.

Além disso, importante ressaltar a questão da arrecadação do Estado, que seria reduzida em razão de o trabalho terceirizado transferir funcionários para empresas menores, que pagam menos impostos. Questiona-se, ainda, a sobrecarga adicional ao SUS e ao INSS, tendo em vista que os trabalhadores terceirizados são vítimas de doenças ocupacionais e acidentes de trabalho com mais frequência, o que onera a Saúde Pública e a Previdência Social.

Outro ponto tormentoso é a insegurança da organização sindical. Com o retrocesso social imbuído nas linhas do PL 4.430/04, a tendência seria a fragmentação dos trabalhadores, que não conseguiriam criar laços de identidade com as empresas envolvidas na terceirização, o que enfraqueceria suas práticas reivindicativas, de conflito e negociação, e reduziria os níveis de sindicalização. A contrapartida seria o fortalecimento do processo de exclusão econômica e social.

Para se ter uma noção do que representam os efeitos deletérios da terceirização na sociedade, os Estados Unidos, por exemplo, por meio do sistema just in time scheduling, revelam ao mundo a evolução da flexibilização. Tal como explicado pelo economista americano Robert Reich, ex-secretário de Trabalho do governo Bill Clinton, em seu artigo How the New Flexible Economy is Making Worker´s Lives Hell, hoje em dia não é difícil que uma pessoa a caminho do trabalho receba um telefonema do contratante dizendo que não precisa mais ir trabalhar naquele dia. Os funcionários, antes considerados custos estáveis das empresas, com salários e horários de trabalho previsíveis, tornaram-se custos variáveis nos negócios. Em outras palavras, os empregadores não precisam pagar alguém para estar no trabalho, a menos que a pessoa seja realmente indispensável naquele dia. Agora fazendo referência a um país europeu, o professor da USP e especialista em Sociologia do Trabalho, Ruy Braga, traz à tona a situação de Portugal: de cada dez postos criados após a flexibilização, seis eram voltados para estagiários ou trabalho precário. O resultado, como não poderia ser diferente, é um aumento exponencial de portugueses imigrando.

Em vista dos argumentos apresentados, entende-se que a liberação indiscriminada das terceirizações pode levar à piora do quadro de desigualdade já existente no mercado de trabalho e intensificar a insegurança social e econômica no País. O que se espera é que o assunto seja examinado com o espírito público necessário, de forma a garantir que esse processo não se transforme na antítese dos princípios, institutos e regras que vêm norteando o progresso civilizatório da sociedade. Não são poucas as controvérsias que giram em torno do tema, e é por essa razão que deve ser travado um debate sensível a respeito, de modo a não permitir que a questão se reduza ao cortejo de fracassos e inadequações, com o desmonte dos direitos trabalhistas tão arduamente conquistados. Tal como enunciado no Tratado de Versalhes (1919), o trabalho não deve ser considerado como simples mercadoria ou artigo de comércio, sob pena de se vilipendiar a dignidade social humana.

* EDER SIVERS É DESEMBARGADOR FEDERAL DO TRABALHO DA 15ª REGIÃO.  JULIANA PERRELLA DE OLIVEIRA SANTOS É ASSISTENTE TÉCNICO de GABINETE DE DESEMBARGADOR