Estudo, que leva em consideração pessoas que declaram IR, evidencia desigualdade de gênero
E as mulheres ganham pouco mais de 70% do que recebem os homens no mercado de trabalho, essa distância é ainda maior quando se compara a posse de bens: elas detêm, em média, o equivalente à metade da riqueza deles, dado que indica concentração bem maior do patrimônio nas mãos dos homens. Estudo do professor da Universidade Federal do Ceará, Marcelo Lettiere, diretor-executivo do Instituto Justiça Fiscal, ONG de estudos tributários, informa que a riqueza média da mulher era de R$ 154,9 mil em 2014, de acordo com as declarações de Imposto de Renda da Pessoa Física. O valor é 54% dos R$ 292,3 mil que os homens conseguiram acumular até aquele ano. Uma distância de gênero tão grande na riqueza não tem uma única explicação: mercado de trabalho desigual e um modelo social que manteve as mulheres tuteladas por seus pais e maridos até o início dos anos 1960, com impedimentos ou brechas para dificultar transmissão de heranças ou propriedades, emperram a caminhada em direção à igualdade.
O sistema tributário não intensifica apenas a disparidade de renda, ele também agrava o quadro da desigualdade de gênero, diz Lettiere:
— O sistema não tem um viés de gênero, porém, acaba tributando mais as mulheres, por beneficiar quem tem mais ganhos por meio de lucros e dividendos, o que não é o caso feminino.
Assim, uma parcela maior dos rendimentos femininos é tributada. Os homens, por sua vez, têm mais rendimentos isentos e tributáveis na fonte, nos quais as alíquotas não crescem conforme a renda aumenta. Há mais donos de empresas entre eles e, por isso, pagam proporcionalmente menos impostos que as mulheres.
— Para as mulheres acumularem mais patrimônio, elas precisam ser muito mais agressivas que os homens em qualquer tipo de investimento financeiro — afirma Lettiere.
As mulheres têm 65% dos seus rendimentos tributáveis, enquanto os homens têm 57%. “Em síntese, as mulheres não somente recebem rendimentos mais de 20% inferiores aos dos homens, como também são prejudicadas ao receberem maiores rendimentos tributáveis do que eles, que são desproporcionalmente favorecidos por isenções ou tributação mais amena na fonte”, diz o estudo publicado no livro “Tributação e desigualdade”, lançado este mês pela editora Letramentos, Casa do Direito e FGV Direito Rio.
SÓ 4% DAS MULHERES GANHAM MAIS DE R$ 4.664
Do total do patrimônio declarado à Receita Federal, 64% vêm dos homens e 36% das mulheres, outro indicador de desigualdade. Fernando Nogueira da Costa, professor titular do Instituto de Economia da Unicamp, que também estuda dados tributários, vê na opressão histórica da mulher outra explicação para que elas tenham peso menor na riqueza:
— No passado, as mulheres não recebiam formação e, portanto, não tinham atribuições de gestão.
Segundo a economista Hildete Pereira de Melo, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), o Código Civil de 1916 manteve a mulher naquela época numa situação de desvantagem equivalente ao século XIX. Desde então, a legislação passou por diversas reformas.
— Com o Código Civil de 1916, o legado discriminatório permanecia. Legalizou-se a hierarquia das relações de gênero e direitos civis das mulheres foram mitigados. A chefia conjugal era dos homens. Aos maridos cabia administrar os bens do casal, inclusive os bens particulares da mulher. O marido tinha que consentir com o trabalho remunerado. Esta é a raiz da dependência das mulheres na sociedade conjugal. Nas partilhas, elas acabam sendo, em muitos casos, passadas para trás pela falta de treino com os negócios, preferem ficar com bens e permanecer de fora dos negócios.
Mais de um século depois, Cristina Leão, aos 60 anos, empresária, professora e mestranda em Psicologia, tem um carro e um apartamento, conquistados com o trabalho desde os 14 anos. Porém, ela considera sua riqueza “bem menor em comparação à dos homens”. Criou o filho, de 32 anos, sozinha e se queixa da discriminação nas empresas:
— Vejo mais essa desigualdade em relação à mulher dentro das empresas. Os homens acabam tendo mais chances e oportunidades. É uma consequência de um traço cultural do Brasil de até pouco tempo atrás, que ainda deixa resquícios nos dias de hoje.
Somente em 1962 foi dispensada a autorização do marido para a mulher trabalhar, lembra a professora da UFF. E, no passado, os lotes da reforma agrária saíam somente no nome do marido. Quando se separavam, o homem botava a mulher para fora. Somente após 2003 a posse do lote começou a ser emitida com o nome do casal. Ou seja, até entre os pobres, a propriedade era para os homens.
A responsabilidade de criar os filhos sozinha, como no caso de Cristina, acontece em 16% dos lares brasileiros, onde os gastos com as crianças ou adolescentes são concentrados na mulher. A economista Cristiane Soares, pesquisadora do IBGE, afirma que a pobreza tem gênero no país. Na população total feminina acima de 18 anos, 43,52% ganham menos de um salário mínimo. A parcela desaba quando o salário ultrapassa R$ 4.664: só 4,4% delas têm esse rendimento. Entre os homens, a participação é quase o dobro (7,94%.)
— Quando a situação financeira é melhor, a desigualdade permanece. Normalmente, os bens ficam nas mãos dos homens — diz Cristiane.
Dados de pesquisas domiciliares feitas pelo IBGE mostram o tamanho dessa desigualdade: entre os que ganham até um salário mínimo, 61% são mulheres. Já entre os que ganham mais de R$ 4.664, essa parcela cai para 34,87%.
Segundo a socióloga Bila Sorj, professora da UFRJ, essa diferença no patrimônio reflete o lugar da mulher no mercado de trabalho e na família:
— Elas ganham menos, têm dificuldade de formar patrimônio. Quando estão casadas, os bens ficam em nome dos maridos e, quando se separam, tendem a perder patrimônio.
DISPARIDADE ATÉ ENTRE MILIONÁRIOS
Nogueira da Costa, da Unicamp, mostra outro recorte de disparidade, com base em dados de Imposto de Renda. Entre os declarantes que ganham mais de 320 salários mínimos, 1.574 são homens, ou 86,5% do total. Nesse universo de milionários, há apenas 245 mulheres. Mesmo num clube tão seleto a riqueza média da mulher é menor. A média masculina é de R$ 87,4 milhões; a feminina é de R$ 53,5 milhões.
— De alto a baixo (da pirâmide de renda), a diferença é escandalosa. Com esses dados, se conhece mais a sociedade por dentro — diz Nogueira.
Isabela Simões é médica, divorciada e tem um filho de 21 anos, que mora com ela. Para a médica, a diferença salarial está na disponibilidade dos homens de absorverem mais trabalho, por não terem a carga da criação dos filhos e dos cuidados com a casa. A mulher trabalha cerca de cinco horas a mais que o homem por semana, ao somar a jornada remunerada com a doméstica:
Eles conseguem passar mais tempo no consultório, visitando pacientes em hospitais, o que aumenta a renda. Mas isso não é possível para quem precisa cuidar da casa e dos filhos. É impossível ficar chegando tarde da noite quando se tem essas responsabilidades.
A ascensão nas empresas para cargos executivos ainda é tímida. Pesquisa da consultoria Oliver Wyman com 381 organizações de 32 países e 850 profissionais do setor financeiro mostra que as mulheres têm representação de apenas 20% nos conselhos de administração e de 16% nos comitês executivos. No Brasil, a parcela é ainda menor: elas preenchem 10% dos comitês executivos:
— Quando há menos mulheres nos conselhos e diretorias, a desigualdade econômica aumenta — diz Laura Maconi, diretora da Oliver Wyman.