O Brasil foi condenado no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA) por um caso que envolve trabalho escravo no Pará. Conforme a sentença, terá que desembolsar US$ 4,7 milhões (cerca de R$ 15,6 milhões) para indenizar 128 trabalhadores que atuaram numa fazenda de gado e reabrir investigações e ações contra os responsáveis. Além disso, precisará deixar de aplicar prescrição penal em situações análogas, o que pode resultar na reabertura de vários outros episódios.

É a primeira vez que escravidão gera condenação a um país na Corte Interamericana de Direitos Humanos, o órgão jurisdicional da OEA sediado em San Jose, Costa Rica. A sentença, de 20 de outubro, foi divulgada na semana passada. O caso diz respeito a reincidentes flagrantes de irregularidades na Fazenda Brasil Verde, imóvel de 8.544 hectares do Grupo Quagliato  em Sapucaia, sul do Pará.

As primeiras denúncias remontam a 1988, quando a Comissão Pastoral da Terra (CPT) colheu relatos de ameaças sofridas e desaparecimento de dois rapazes que trabalhavam no local. Em diversas outras ocasiões, delegacia do trabalho ou grupos de fiscalização encontraram irregularidades na Brasil Verde. No rol de denúncias há trabalho forçado, servidão por dívida, ameaças de morte a quem tentava sair, falta de salário ou remuneração ínfima, moradia precária e alimentação inadequada.
A condenação do Brasil diz respeito a dois flagrantes que não tiveram andamento adequado na Justiça. O primeiro foi de uma fiscalização de 1997 que resgatou 43 trabalhadores em situação de escravidão. Cada um deverá receber US$ 30 mil do Estado, conforme a sentença internacional. O segundo é de 2000, quando foram resgatadas mais 85 pessoas. Nesse grupo, a indenização individual foi estipulada em US$ 40 mil.

Segundo estimativa da cientista política Beatriz Affonso, diretora do Centro pela Justiça e o Direito Internacional (Cejil), ONG que levou o caso à OEA com a CPT, cerca de 80% dos 128 trabalhadores envolvidos são analfabetos ou semianalfabetos. A entidade tem contato com 54 deles, mas cabe ao Estado fazer a localização para viabilizar as indenizações.

O Brasil foi condenado porque, segundo entendimento dos juízes da corte, obstruiu a obtenção de Justiça às vítimas. No caso de 1997, a ação judicial correspondente foi declarada extinta por prescrição após anos de empurra-empurra entre as justiças federal e estadual. Ambas se declaravam incompetentes para julgar. No de 2000, não houve sequer processo. Com isso, ninguém jamais foi responsabilizado pelos crimes.

Antes da condenação, explica Beatriz, o Brasil teve a oportunidade de negociar com a Cejil e a CPT para o julgamento. Mediada pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), sediada em Washington, essa negociação durou três anos e envolveu 17 repartições públicas brasileiras.

Para evitar o risco da condenação, explica ela, o governo já havia concordado em pagar US$ 2 mil para cada trabalhador, oferecer atendimento médico, curso de alfabetização e profissionalização. O acordo previa ainda 21 medidas de prevenção, como ações nos municípios com maior ocorrência de aliciamento e fortalecimento dos grupos de fiscalização.

“O acordo estava praticamente fechado, mas emperrou por uma bobagem”, diz a diretora do Cejil. “Para dar essa indenização simbólica de US$ 2 mil, o governo exigia que cada trabalhador assinasse quitação total de danos materiais, morais e lucros cessantes, algo inaceitável”, afirma. “O outro detalhe é que a Advocacia-Geral da União queria que o dinheiro fosse entregue a nós para fosse repassado aos trabalhadores. Mas a Cejil não faz intermediação. O dinheiro tem de ir direto para a vítima.”

Não foi por falta de experiência que o Brasil não fez acordo. Numa ocasião anterior, também sobre trabalho escravo, que virou paradigma jurídico – o “Caso Zé Pereira” -, o país evitou o julgamento ao fechar acordo com os peticionários. A vítima recebeu indenização e o governo assumiu uma série de medidas que resultaram no Programa Nacional de Combate ao Trabalho Escravo, reconhecido como exemplo pela Organização Internacional do Trabalho (OIT).

Em nota, a Secretaria Especial de Direitos Humanos afirmou que “reconhece a sentença que condena o Brasil por violações ao direito de não ser submetido à escravidão e ao tráfico de pessoas, às garantias judiciais e ao direito à proteção judicial”. Diz ainda: “Consideramos que a sentença, ainda que condenatória ao Estado brasileiro, representa uma oportunidade para reforçar e aprimorar a política nacional de enfrentamento ao trabalho escravo, especialmente no que se refere à manutenção do conceito, assim como em relação à investigação, processamento e punição dos responsáveis pelo delito.”

É um tratamento diferente ao do caso de desaparecidos do Araguaia na ditadura. Condenado pela mesma corte a rever a Lei da Anistia, o Brasil até hoje não agiu.