Ela poderia ser apenas mais uma candidata entre os oito que, até agora, confirmaram participação na corrida rumo ao cargo de presidente da Câmara dos Deputados. Poderia – pelo tamanho do partido que representa, o PSOL, uma sigla com apenas dez das 513 cadeiras da Casa – diluir-se ao menos midiaticamente no cardápio do jogo político que hoje sacode os debates da oposição, do Poder Legislativo, das redes sociais.
Poderia também desistir de sua candidatura nestes dias que antecedem a escolha do próximo líder da Câmara, agendada para 1º de fevereiro, abandonando o caráter de chapa-protesto. Mas eis que Luiza Erundina (PSOL-SP), esta veterana de 86 anos e com carreira política inaugurada ainda nos anos 1970, parece não caber muito em algumas previsões.
Nos últimos dias, ela atraiu os holofotes, fazendo a escolha da legenda chamar mais atenção do que o previsto, e segue demonstrando firmeza na opção por representar oficialmente o PSOL na corrida em uma chapa própria.
A parlamentar se mostra impermeável ao coro dos que hoje clamam por uma desistência sua sob o argumento de que seu nome ajuda a pulverizar o pleito e a fortalecer o candidato apoiado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), o deputado Arthur Lira (PP-AL).
“Só falta pressão do Papa. Estou virando uma Geni da história política do país”, afirma a psolista, que também é a única mulher na disputa e destaca o fato de a Câmara jamais ter tido uma na presidência, “em 198 anos”. Ela também se exalta ao mencionar as dificuldades que enfrentou no ambiente político desde o início de sua jornada de militante.
“Evidentemente, tenho outras características que se somam ao fato de ser mulher e que têm sido objeto de muito preconceito contra mim na política brasileira”, resgata, ao citar seu caráter de gênero, classe social, a condição de nordestina e a opção por pautas de viés popular e, por vezes, polêmicas.
Ferrenha defensora do impeachment de Bolsonaro, ela conversou com o Brasil de Fato sobre esse e outros temas, como, por exemplo, algumas de suas metas na corrida da Câmara.
Pontos como as dissidências internas no PSOL em relação à sua candidatura, a participação popular na Casa e a fiscalização dos processos relacionados à vacinação contra a covid-19 no Brasil compõem o roteiro da entrevista. Confira a seguir os principais trechos da conversa.
BdF – Vocês do PSOL elegeram três pontos principais para a sua candidatura: a defesa do impeachment de Jair Bolsonaro, a vacina contra a covid-19 para toda a população e a chamada “renda justa permanente”. Que espaço político acha que poderia ter para emplacar a primeira e a última pauta, levando em conta o perfil da maioria dos congressistas e a influência da qual Bolsonaro e sua equipe econômica ainda gozam entre esses grupos?
Não imagino que essas propostas se viabilizem no âmbito apenas do Legislativo porque esse Parlamento não tem uma história de autonomia, de independência e compromisso com o povo e suas prerrogativas como a chamada “casa do povo” – inclusive, é uma casa sem povo. Mesmo com a presidência – no caso, se fosse eu –, teria que lidar com a cultura política da Casa, a cultura dos partidos todos, que não vinculam seus mandatos e seus cargos àqueles a quem devemos nossa presença no Parlamento.
Aquela Casa, a história dela, a cultura dela não promete, para quem quer que esteja na presidência, o encaminhamento de um processo de impeachment do presidente da República acolhido e encaminhado com toda vontade e determinação e que tenha maioria num primeiro momento pra que essa proposta seja aprovada.
Sem dúvida nenhuma, a sociedade brasileira quer o impeachment do Bolsonaro
Mas os avanços que se conseguem, as votações que se conseguem viabilizar, só acontecem quando você tem uma forte mobilização da sociedade. E hoje eu avalio que o impeachment do Bolsonaro e esses dois outros pontos que fazem parte da nossa proposta são um grande anseio da sociedade brasileira. Mesmo com a pandemia, dificuldade de presença em atos públicos e manifestação presencial, esses anseios não chegam aos ouvidos da Câmara.
No caso, se a gente chegar lá, o mandato de presidente da “casa do povo” será uma caixa de ressonância daquilo que a sociedade quer. Sem dúvida nenhuma, a sociedade brasileira quer o impeachment do Bolsonaro. Só não o fez por dificuldades da pandemia, da prevenção ao coronavírus; por isso as manifestações por essa pauta não se manifestam massivamente, fisicamente de forma muito clara por conta das limitações que esta conjuntura atual coloca.
Mas eu acredito – a minha experiência política de tantos anos já me mostra – que os mandatos, sobretudo os nossos partidos, são sempre muito minoritários, mas se viabilizam muitas das nossas propostas, que não seriam viabilizadas sem ter uma forte adesão da sociedade civil organizada. Portanto, eu conto com isso como presidente da Câmara.
O primeiro ato nosso será resgatar os pedidos de impeachment
É [preciso] ter uma casa aberta, uma casa com povo, de fato, e um diálogo permanente com a sociedade e procurando responder aos anseios [de segmentos] da sociedade [dos] que se sentem representados ou precisam se sentir representados nos mandatos que estão na Casa por conta desses mesmos setores populares.
Portanto, acredito na política como um gesto de sujeitos coletivos e cuja correlação de forças é o povo que cria, altera, melhora ou piora, dependendo da conjuntura, mas é com isso que eu conto. E o primeiro ato nosso será resgatar os pedidos de impeachment, que são mais de 60 naquela Casa, o que é prerrogativa do presidente.
BdF – Deputada, a sua candidatura vem sendo apontada por críticos como algo que ajuda a fortalecer o bloco do candidato do Bolsonaro por pulverizar mais a disputa. Inclusive, alguns artistas e internautas aderiram a esse discurso. Como a senhora lida com isso?
Isso é uma falsa questão, porque isso também se aplica – mas ninguém fala – aos outros partidos que estão nesse bloco em torno do Baleia Rossi. O PT tem gente que já se colocou na disposição de votar já no primeiro turno no Lira. É a mesma coisa.
E, para não falar apenas nos partidos do nosso campo, mas falar, por exemplo, no DEM e no próprio MDB, que são partidos que sustentam essa candidatura [do Rossi] e, no entanto, têm muitos parlamentares desses dois partidos que já se declararam e estão atuando no interesse da vitória do Lira no primeiro turno.
Conheço o MDB de São Paulo, conheço a atuação política dele, e foi sempre na direção da direita
Por que não cobram deles? Por que só cobram do PSOL, se ele tem apenas 10 deputados? E não levam em conta a trajetória, a história e o compromisso político do PSOL, que sempre teve candidatura própria em outras conjunturas não tão graves e nem tão prementes como a que estamos vivendo hoje. E não são os 10 votos que vão alterar essa disputa, porque essa é uma disputa de dois turnos, e eu não acredito que, com tantos candidatos, [com] oito candidatos, alguém possa vencer no primeiro turno, com 257 votos.
Portanto, temos um segundo turno. Jamais votaremos em um candidato declaradamente apoiado pelo Bolsonaro, que é o caso do Lira. E aí, mesmo fechando o nariz, nós vamos votar, no segundo turno, se estiverem lá o Baleia e o outro, o candidato declaradamente bolsonarista.
Sabe por quê? Conheço o MDB de São Paulo, conheço a atuação política dele, e foi sempre na direção da direita. Não precisa nem recorrer ao passado dele, à militância política em São Paulo. [Bastam] as votações dele na Casa, as votações a favor da reforma previdenciária, contra o povo, da reforma trabalhista, contra os trabalhadores. Aliás, [também] a Emenda Constitucional 95, o Teto de Gastos, pra viabilizar a política econômica de austeridade fiscal. Ele votou em todas.
Ele votou favoravelmente a tudo isso que hoje expressa o governo bolsonarista, portanto, não vejo tanta diferença. Mas tem diferença, do ponto de vista simbólico, inclusive da política.
No segundo turno, ninguém do PSOL votará nesse candidato bolsonarista declaradamente. Votará no outro candidato que tiver chegado lá, mesmo reconhecendo que não são candidatos, nesse segundo turno, que se recomende, pelas posições que eles vêm tomando ao longo de sua militância política na Câmara dos Deputados, portanto, no Legislativo, em relação a uma pauta reversiva, uma pauta que levou o país a este caos
Seguir isso de “se vocês não votam num candidato, vão dar a vitória ao outro” é uma falácia
Por tudo isso, é fácil entender e aceitar o que um partido que é declaradamente de esquerda, que historicamente vem apresentando candidatura própria em todas as disputas em torno desta Casa, um partido que tem se firmado na sociedade por sua proposta de esquerda e sua sigla, como o PSOL vem se conduzindo, o recomenda – pela sua coerência, pela sua firmeza, sua transparência em suas posições.
Portanto, não sei por que tanta estranheza. É que estão buscando um bode expiatório pra justificar os equívocos que esses companheiros e companheiras do nosso campo estão cometendo. Isso é o senso comum. E uma liderança política, um partido com as características do PSOL, que é um verdadeiro partido, não pode se orientar pelo senso comum porque este é influenciado pela massa, sem os elementos de crítica e de análise política possíveis de serem feitos.
Então, seguir isso de “se vocês não votam num candidato, vão dar a vitória ao outro” é uma falácia. Não é verdadeiro isso. Essa cobrança faz muito mais sentido de ser dirigida aos partidos do nosso campo PT, PSB, PSB, PCdoB e aos partidos da direita que estão nessa candidatura e que têm eleitores no Lira, seja o DEM, seja o MDB.
Portanto, quem mais precisaria ser cobrado do resultado, qualquer que ele seja, são esses outros partidos, que são grandes, têm muitos votos, mas que estão divididos. Como é que querem que dez votos do Psol sejam a solução pra resolver esse impasse e essa dificuldade? Esse processo está sendo muito investido de muita contradição, de muito equívoco.
Não atribuo nem ao PSOL essa pecha de que, se não aderirmos no primeiro turno a esse bloco dito “de esquerda” – mas não sei bem, porque também tem DEM, tem MDB, e eu não sei de que esquerda é essa gente, enfim… Mas, de qualquer forma, nós temos razões, explicações que convencem quem presta atenção a esses argumentos e à própria historia do nosso partido. Não estamos concorrendo para isso.
BdF – O presidente da legenda, Juliano Medeiros, falou sobre esse tema e reafirmou o posicionamento do PSOL pela candidatura própria. Como o partido tem lidado com as dissidências internas em relação a essa pauta?
São problemas a serem resolvidos internamente. Num partido democrático, transparente e que dá liberdade de posição interna, mesmo quando se delibera por maioria, essa posição é seguida ou pelo menos deve ser seguida pelo conjunto do partido. Tem tido muita pressão, muita dificuldade interna, mas foi sanada, a meu ver, com a decisão da executiva nacional por uma margem de votos enorme a favor da posição de uma das partes da bancada.
Eu imaginei – e imagino – que a decisão da executiva seria suficiente para que os companheiros se unificassem em torno dessa posição, que é exatamente esta: no primeiro turno, é ter candidatura própria, com um programa e compromissos muito claros, e não votar em hipótese nenhuma, nenhum voto será para o Arthur Lira.
Nunca o PSOL votou dividido numa eleição dessa Casa e em nenhuma outra eleição, portanto, isso me deixa muito tranquila
E votaremos, de certa forma, constrangidos [no segundo turno] por ter que votar num candidato que em si mesmo, ele como tal… Ainda hoje ele negou o seu apoio ao auxílio emergencial. Vi uma fala dele, ninguém me falou, [dizendo] que essa verba emergencial que estão querendo criar – não por iniciativa dele – terá que ser no limite do suportável pro mercado.
Você toma uma decisão. Não dá pra ser presidente da Câmara, se for, e ficar condicionando uma iniciativa pra repor aquilo que o Bolsonaro retirou – que é uma verba aprovada pela Câmara a despeito da pressão do governo – e que, inclusive, ele queria [que fosse no valor de] R$ 200, a Câmara aprovou R$ 600, [ele] retirou metade disso uns meses atrás e acabou agora com esse programa, com esse auxílio.
E esse candidato ainda condiciona o retorno desse programa ao interesse do mercado? Que [candidato a] presidente é esse? Não me convence. Mas nós vamos, no segundo turno, se for ele que estiver lá com o outro, assumidamente bolsonarista, nós não vamos, evidentemente, [por] nossa consciência… O voto é secreto e nunca votamos a pretexto de ser secreto sem declarar nosso voto e sem votar por unanimidade. Nunca o PSOL votou dividido numa eleição dessa Casa e em nenhuma outra eleição, portanto, isso me deixa muito tranquila.
Temos administrado as dificuldades internas, mas entendo que a decisão da direção nacional é definitiva, é a última, e eu só digo uma coisa: a única possibilidade de eu retirar minha candidatura é o PSOL retirar. Ninguém pode me obrigar a retirar, nem eu mesma teria o poder de fazê-lo porque sou uma candidata que não sou de mim mesma.
Não imaginam o que enfrentei quando me elegi prefeita de São Paulo, por ser nordestina, mulher, por ser de um partido de esquerda
Foi uma demanda do partido – com uma solução interna, inclusive –, por ser mulher também. Em 198 anos de vida da Câmara, do Poder Legislativo do Brasil, nunca uma mulher teve chance de se candidatar com alguma possibilidade de vitória à presidência da Casa, que é o segundo cargo na hierarquia de poder do Brasil e do Estado democrático de direito do país.
Então, está lá, na hora em que uma mulher de um partido coerente, democrático, popular e de esquerda, como é o PSOL, e que tem se mantido numa linha muito coerente, muito consequente, pública sobre sua posição – e é isso que está fazendo o PSOL crescer, que está afirmando o papel político do PSOL na atual conjuntura… Portanto, do meu ponto de vista, do ponto de vista do PSOL como bancada, [também] como PSOL nacional, esta situação está resolvida. A candidatura está se empenhando o máximo que nós podemos, e o partido também está ajudando muito, a coordenação da bancada disponibilizando os meios de que dispomos pra que possamos fazer nossa campanha com a maior qualidade que se possa fazer, e é isso que está acontecendo.
Essa celeuma é estimulada, evidentemente, por quem está inseguro ou insatisfeito, mesmo internamente ao partido, com essa candidatura – que não é minha, não pleiteei, não pedi, aceitei como uma tarefa partidária porque eu sou uma pessoa disciplinada partidariamente.
BdF – A senhora, como foi lembrado agora, é a única candidata mulher e a Câmara nunca teve uma mulher na presidência. Vocês deputadas costumam apontar muito os problemas relacionados às assimetrias de gênero no âmbito do parlamento. Do ponto de vista da disputa para a presidência da Casa, de modo geral, a senhora sente algum tipo de discriminação a mais no jogo político?
Não publicamente, mas velado, sim. Essa reação aí tão violenta, quase que querendo me transformar em bode expiatório pra justificar posições não justificáveis do ponto de vista dessa decisão sobre a votação e sobre o primeiro turno, é algo que a gente vive. E eu, evidentemente, tenho outras características que se somam ao fato de eu ser mulher e que têm sido objeto de muito preconceito contra mim na política brasileira.
Não imaginam o que enfrentei quando me elegi prefeita de São Paulo – por ser nordestina, por ser mulher, por ser de um partido de esquerda, por ter uma militância política ligada aos interesses populares da periferia, dos pobres, enfim. Sou uma pessoa muito odiada do ponto de vista da classe dominante, dos nossos adversários políticos – inimigos políticos, não adversários, porque um adversário convive com o diferente de forma democrática.
Mas, com certeza, [com] as minhas condições pessoais – e agora acrescidas da condição de ser idosa, que é mais uma –, de ser nordestina, idosa, de esquerda, de ter militância muito ligada ao povo, de não ter enriquecido na política nem como prefeita da terceira maior cidade do mundo, a maior cidade da América Latina, com orçamento bilionário, eu saí com o que eu sou, com o que eu tenho…
Quem faz política e se beneficia dela certamente se constrange, se irrita, não gosta de quem demonstre… Não é virtude isso. É uma obrigação a honestidade, a coerência, o respeito ao interesse público. É obrigação, não mérito, não virtude. Certamente, sou alvo de muito preconceito. Imagine você que uma candidatura com uma viabilidade muito pequena, [baixa chance] de chegar lá já gera tanta confusão, tanta perseguição, tanta pressão.
Pressionem, então, o PSOL, não a mim. Não sou candidata de mim mesma.
Tenho recebido pressão que só falta pressão do Papa. Muita gente me pressionando pra que eu retire [a candidatura]. Eu digo “gente, a candidatura não é minha, eu não tenho a liberdade de [retirar], a não ser transigindo aos meus princípios, minhas convicções”. É do partido, não minha. Estou à disposição se o Psol entender que a retirada seja o correto. Vou sair tão segura quanto [estava] quando assumi essa candidatura e aceitei a tarefa.
Não vejo como um privilégio ser candidata. É uma tarefa, uma tarefa muito difícil do ponto de vista dela em si mesma. [São] sete, oito candidaturas, todas de homens, poderosos, brancos, ricos, enfim, de classe dominante, e a minha política é feita dessa forma.
Tenho meus defeitos, a sociedade deve reconhecer, como tenho minhas virtudes, porque não escondo nada. Então, não sei por que me transformar numa única candidatura responsável pela ameaça de o Arthur Lira ganhar no primeiro turno. Pelo amor de Deus, eu não sou responsável por isso. Por que também toda a bancada do PT não vota, no primeiro turno, contra o Lira? Por que também toda a bancada do PSB não vota como um todo contra o Lira no primeiro turno? Por que parlamentares do PCdoB votam também no Lira? Por que só eu, só o PSOL [somos criticados]? Que é isso?
Não é historicamente compreensível essa atitude de pressão, por favor. Pressionem, então, o PSOL, não a mim. Não sou candidata de mim mesma. Não preciso de mandato mais, nunca precisei de mandato. Meus mandatos sempre foram pra representar o povo naquilo que ele merece, que tem direito. Portanto, ter ou não ter mandato, pra mim, não faz a menor diferença.
Por tudo isso, estou muito tranquila e dizendo pro partido “olha, decidam vocês, respondam a essas críticas e a essas pressões com o partido, porque eu não tenho o que dizer a não ser ‘eu não sou candidata de mim mesma’”. Mas, costumo, quando assumo uma tarefa, levar às ultimas consequências. Eu a faço a melhor que puder fazer.
BdF – Vi no plano de metas de vocês que a criação uma mesa de diálogo com a sociedade civil para ajudar na elaboração da pauta da Câmara seria uma das suas primeiras medidas, caso a senhora vencesse a eleição. Que outras mecanismos de participação a senhora acha que a Casa poderia implementar para aproximar a sociedade dos debates do parlamento? Nós temos hoje um cenário em que, muitas vezes, representantes populares sequer conseguem adentrar o prédio da Câmara…
A Câmara, inclusive, tem portas de ferro no acesso ao plenário pra que o povo não possa entrar na sua casa. É uma balela dizer que a Câmara é uma “casa do povo”. É uma casa do povo sem povo, e com portas de ferro pro povo não conseguir acessar o plenário e pelo menos acompanhar [as votações presencialmente] e ver o que seus representantes estão fazendo.
Nesse sentido, acho que as coisas devem ser colocadas nos devidos termos. E a Constituição de 1988 é rica em mecanismos de democracia direta, democracia participativa, porque, não tendo isso, não temos democracia plena. A democracia plena, do ponto de vista político, é dizer que o poder popular se exerça ao mesmo tempo, complementando a dimensão popular da democracia.
Eu estou virando uma Geni da história política do país
O que nós queremos seria uma espécie de fórum permanente com representantes da sociedade civil pra discutir algumas agendas. Com questões de ordem nacional e com forte impacto na vida da sociedade, seria de bom alvitre, seria justo que nesse espaço, um espaço plural, esse fosse mais um dos mecanismos entre tantos outros que já existiram.
O Bolsonaro acabou com todos os mecanismos criados [no país], mesmo aqueles que foram criados por lei – os conselhos nacionais das políticas públicas de saúde, educação, assistência social, criança e adolescente. Ele acabou com tudo, mesmo à revelia da Constituição, e a Câmara nada fez pra sequer denunciar isso. Então, está na hora de se chegar lá [na presidência]. Se não chegarmos, vamos cobrar junto com a sociedade um espaço desse tipo pra que aquela Casa não seja tão fechada.
BdF – Uma das coisas que o partido tem defendido é uma postura ostensiva do Congresso na fiscalização da vacinação. A gente já vive uma série de imbróglios relacionados a esse tema no país. Caso vença as eleições, como a senhora pretende organizar e liderar essa pauta especificamente na Câmara?
Quando conseguir pautar o impeachment, logo no início, e [avaliar] se teria ou não viabilidade. Isso vale também pra essa questão da pandemia, da vacinação e de outras coisas. Nós temos que acreditar na mudança da cultura política do país, e não é só com processo, com impeachment de governador, prefeito, político, deputado, senador, de sei lá mais o quê, mas é tendo uma postura firme, corajosa, decidida em tudo, desde as coisas mais simples.
Isso chegou ao limite, [no sentido] de você dizer “basta, não dá mais”. Precisamos mudar isso. O Brasil é maior do que essa gente. Então, por isso estou nessa, com todas as limitações, com todas as dificuldades, com as objeções a essa posição do PSOL à qual eu me submeti e que assumi em parte como candidata.
É por isso que eu incomodo tanto. É por isso que eu estou virando uma Geni da história política do país, porque estão jogando [isso] em toda a minha pessoa – não é nem no PSOL, e sim na minha pessoa –, como se eu estivesse segurando o PSOL por não dar, no primeiro turno, apoio ao Baleia. É me dar muito poder.
Incomodo porque exijo mudança de cultura política, de ética na política, de respeito ao interesse público, [exijo] a democracia, que passa pelo voto popular. Fui candidata tantas vezes – perdi várias, ganhei algumas. Isso não faz mais a diferença, muito menos neste estágio da minha vida, que está se concluindo muito proximamente, sobretudo na minha vida pública. Portanto, eu não sei por que tanta ira, tanta pressão, tanto desrespeito à minha história de vida, que foi dentro do que era possível, foi dentro do eu fiz de apelo pessoal.
Minha origem de classe é que determina muito [isso]. Eu não vim pra servir ao mercado, não vim pra servir à concentração de renda às custas da fome, da miséria, da pobreza e do desemprego da maioria. É por isso que eles têm ódio de mim, e eu não vou ceder. Não pensem que vão dobrar a minha coluna vertebral. Ela se consolidou quando criança, subnutrida e migrando com a família por causa da seca pra não morrer de fome nem de sede.
BdF – A senhora tem toda uma experiência política, uma carreira vasta. Tem algum elemento do cenário atual do parlamento ou da política nacional como um todo que considera como mais desafiador e, talvez, diferente do que foi vivido pela senhora até aqui?
A política é muito dinâmica. Você nunca tem, numa legislatura – e eu já estou na sexta –, uma composição sequer próxima da outra, seja pela sua composição, que se altera, seja porque tem o poder de definir as pautas e as agendas, seja porque a presidência da mesa [diretora da Câmara] é mais ou menos aberta à sociedade civil.
Lamentavelmente, o que eu tenho a dizer é que tem piorado a composição da Câmara, mesmo quando ela se renova do ponto de vista etário – nós renovamos quase 50% na ultima eleição, a de 2018, mas veio muita gente jovem.
Era de se imaginar que a qualidade do desempenho dos parlamentares da Casa fosse bem melhor do que a anterior. Eu lhe asseguro que tem sido muito pior, para além da questão da pandemia, para além do agravamento da questão econômica, da questão social, da questão política. É o poder de sempre, é o Estado brasileiro nos termos em que se encontra porque ainda não se radicalizou a democracia. Estamos engatinhando no processo da democracia, mesmo a democracia liberal, a democracia que é essa dos marcos do capitalismo, que condiciona todas as instituições.